quarta-feira, 18 de outubro de 2017

A SOLIDÃO DE JUDAS NO QUADRO "A ÚLTIMA CEIA".
























A VERDADE:
Impressionante em muitos aspectos, a cena da "Última Ceia", pintada em Milão, entre 1495 e 1497, identifica Judas por três pormenores, dois dos quais se ligam de fato, com a própria personalidade daquele que traiu JESUS: o não estar na luz, o estar afastado do centro onde se encontrava a luz: JESUS Cristo!


A VERDADE EXPLICADA:
Qualquer figuração clássica da chamada "Última Ceia", do ponto de vista artístico, submete-se, ao veredito da teologia, a mais importante e mais antiga ciência dos séculos passados. Assim, não é estranho ver-se, sobretudo em período de transição como o gótico, mormente na Alta Renascença, a figura de Judas Iscariotes caracterizada pelo recorte psicológico que dele traçavam os evangelhos.

É, neste sentido, um exemplo fundamental, o quadro mais reproduzido da história da Arte. A "Última Ceia", ou "O Cenáculo", de Leonardo da Vinci, é, de certo modo, uma obra pictórica -- documento onde se pode apreciar o estado moral de uma pequena comunidade, que, tomada de um plano geral, nos revela os desfalecimentos, as resignações, os espantos, acima de tudo o recuo evidente da figura de rosto sombreado que representa Judas Iscariotes.

Impressionante em múltiplos aspectos, a cena da "Última Ceia", pintado em Milão, entre 1495 a 1497, identifica Judas por três pormenores, dois dos quais se ligam, de fato, com a própria personalidade daquele que traiu JESUS: o não estar na luz, o estar afastado do centro estabilizador de todo o tumulto (a figura de Cristo), e a forma adunca da sua mão esquerda, como se fosse ave de rapina; o outro, é um pormenor de referência cultural. Segundo informa Giorgio Vasari, contemporâneo do pintor e o maior historiador da arte da Renascença, a figura de Judas toma por modelo o controverso padre reformador Jerônimo Savonarola. Não tendo nada a ver com o "traditore" (traidor), este pormenor relaciona-se em rigor com Leonardo, que era fiel à igreja Romana e não aceitaria a pregação evangélica, "protestante", do célebre padre de Florença.

O perfil psicológico do traidor
O certo, porém é que Judas Iscariotes, como a segunda mais importante figura da obra (a primeira é o Cristo inacabado, por falta de um modelo condigno), assume o seu papel de traidor no verdadeiro sentido psicológico, por detrás do fisionômico, que os evangelistas vão construindo a seu respeito. Por exemplo, na narrativa joanina: "Por que não se vendeu este unguento por trezentos dinheiros, e não se deu aos pobres? -- pergunta Judas. Ora, ele disso isso, não pelo cuidado que tivesse dos pobres, mas porque era ladrão, e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava..." (Jo 12.5,6).

De um modo geral, "A Última Ceia" exibe o momento em que a afirmação de Cristo fere o ar do Cenáculo: "...um de vós há de me trair..." Com efeito,psicanalizando a afirmação e caracterizando-a como ponto chave de toda a cena, do ponto de vista da estética leonardiana, estabelece-se desde logo um ambiente de tragédia que na obra se traduz na imobilidade de todo o movimento. O tempo de resposta à afirmação de Cristo, que Leonardo capta, suspende todos os gestos reflexos dos apóstolos, à exceção dos de Judas, iluminados pela luz que se escapa do centro da obra.

Mas o que a profundidade do tempo imobilizado vem realçar, é a solidão. La solitudine di Cristo, como escreveu um crítico italiano, no centro de um tumulto. Ao drama dos espantos, das dúvidas, da gestualidade inconsciente da culpa, sobreleva-se a tragédia das solidões. Em esplendoroso contra-luz, aquela solidão resignada, a que um rosto incompleto parece dar o toque da aceitação de um destino sobre-humano; na sombra não menos clarificativa, a outra solidão carregando todo o dramatismo, toda a intensidade de um silêncio no meio da conusão geral, dos monólogos e diálogos à meia-voz; Judas Iscariotes era já um afastado da comunidade, na situação limite de um divórcio emocional, dir-se-ia.

No entanto, há uma unidade na composição que deriva da dramaticidade do momento. A dramaticidade das figuras, as expressões dos rostos, o espírito que envolve todo o ambiente, o jogo das mãos "parlanti", toda a arte visual em que a pintura se arquiteta, tornando viva uma grande cena neotestamentária a descolorir-se ao longo dos séculos, possuem o perfeito sentido da proporção e da perspectiva do seu autor.

Quando a obra é "revista e anotada", quase ecdoticamente (fazendo-se a crítica textual), são ainda as palavras do artista que, volvidos cinco séculos, nos ajudam a entendê-la, não apenas no plano estético. De fato, afirmou Leonardo: "Os movimentos de cada figura exprimem um estado mental, um desejo, a ira, a piedade, o desprezo e o amor". Na realidade, as "intenções da alma" podem ser legíveis no rosto, concluiu o pintor, seguindo, de resto, um preceito da teoria da arte da Renascença.

Passado o tempo sobre esse grande momento da criatividade que é "A Última Ceia", a qual escapou por um triz ao bombardeio aéreo da II Guerra Mundial, tem-se falado e escrito muito sobre uma análise freudiana da obra, há até quem tenha reduzido a obra a um mero tema normalíssimo para uma parede de refeitório monástico, uma simples decoração.

Seja como for que se aprecie essa pintura, segundo as perspectivas do Renascimento sobre a luz, anatomia física e psicologia do gesto e da expressão, não podemos deixar de a analisar também pelo mistério, pela intensidade dramática, pelo momento histórico e bíblico que a motivou.

A alusão pictórica a um Judas "sfumato", a desmembrar-se da unidade do grupo, a deslizar da claridade para a sombra, ainda que muito próximo do centro divino distinguido em Cristo, marca sempre o contraste entre as trevas e a luz.


Autor: João T.Parreira
(J.Cristão 27/Dez.1987)

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