sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

ELE É MEU IRMÃO

A VERDADE:

"Não são apenas os negros que sofrem injustiças. Basta rodar pelas cidades brasileiras e presenciar criancinhas de todas as cores sofrendo em preto e branco. Mas como seria bom se ambos pudessem estar na mesma foto de felicidade e se aquele momento jamais amarelecesse! Se jamais perdesse o brilho de Natal!"


A VERDADE EXPLICADA:

Quando me sinto cansado, geralmente pego uma revista e procuro distrair-me com as ilustrações. Sempre gostei de ilustrações. De paisagens e de gente bonita. Até das propagandas, gosto. Aquele jogo de cores e harmonia de espaços fazem-me muito bem. Dias atrás, fui abordado por uma exaustão terrível e resolvi espairecer-me. Acomodei-me no sofá e pus-me a folhear uma conhecida revista. Desta vez, no entanto, minha distração sairia do terreno do mero espairecimento. Não digo que foi uma experiência espiritual. Talvez um choque daqueles que levaram Saquia Muni a escrever os Triptakas.

No ritual de virar as páginas, deparei-me com uma fotografia que certamente passará à história como o mais perfeito símbolo da opressão. Lá estava um garoto angolano; em suas costas, precocemente curvadas, o irmãozinho. É difícil dizer quantos anos tinha aquele menino. Fosse um adolescente, para ele jamais haveria puberdade. Naquele corpo esquelético e naquela expressão indefinida, a natureza parecia em estado de coma. Tive a impressão de estar olhando um egresso de Treblinka. Tive impressão, também, de estar diante de um nordestino, este irmão de tantas secas e irrigações abortadas. Aliás, uma outra impressão tive ainda. De estar sendo olhado. Aquele adolescente reunia as derradeiras forças e açoitava-me um protesto sentido e agudo.

Não me detive muito naquela página. Virei-a com um misto de indecisão e incômodo. Na página seguinte, vejo Bush e Gorbachov. O primeiro, preocupado com os índices de popularidade. O segundo, com a abertura política nas repúblicas soviéticas. Eles discutem a distensão entre o Oriente e o Ocidente. No final do encontro, declaram-se temerosos quanto ao destino do mundo. Que oriente, porém haverá na existência de um guri, cuja fortuna jamais avançou além do ocidente de uma promessa que está sempre no ocaso? Cuja popularidade é anônima e o índice de vida é sempre zero? Cuja abertura é o próprio sepulcro? E que encontro pode haver em todas as suas preocupações? Entre ambos os estadistas e o angolaninho, há uma distância de milímetros. Mas, com certeza, os dois mandatários jamais tomarão conhecimento do drama Betinho. Sim, Betinho é o nome do adolescente angolano. O repórter julgou de pouca importância informar-se acerca de seu nome completo. Talvez fosse Gilberto ou Roberto Vobumba; isso não vem ao caso: ele sempre será conhecido como Betinho.

Continuo a folhear a revista. Brigite Bardot dá prosseguimento à cruzada em prol da preservação do reino animal. Ela despende tempo e dinheiro a cuidar dos bichos. Estes, contudo, parecem não precisar de tantos desvelos. São muito mais fortes do que o angolano que teima na adolescência. Achei confuso tudo aquilo. E se Betinho pudesse compartilhar do leite que bebe aqueles animais? Se pudesse beliscar os nacos de carne de que se alimentam aqueles felinos? Se tivesse acesso à mesma assistência médica? Mas Betinho não está na moda, nem lembra ecologia. Nem bicho é Betinho, apesar de dizerem que ele vive como bicho.

Percorro mais algumas páginas. Constato que o mundo anda preocupadíssimo com o destino da Amazônia. Segundo dizem os ecologistas, a Amazônia é o pulmão do mundo. Se ela vier a desaparecer a humanidade desaparecerá. Até o roqueiro Sting encetou uma campanha em favor da Amazônia, mas nem se lembra de Betinho. Sim, do angolano Betinho! Que não sabe o que é ecologia, mas está em extinção. Que nunca derrubou uma árvore e é abatido no verdor da vida por uma distribuição injusta de riquezas. Ele nunca fez queimada na floresta, porém a indiferença dos poderosos queima-o todos os dias. Jamais ofendeu o pulmão do mundo, mas o mundo está deixando que ele morra de tuberculose. Betinho nunca matou um animal, no entanto está morrendo como bicho. Jamais sujou o mar, porém a praia de sua inocência está poluída com promessas mentirosas.

O anúncio seguinte deixa-me mais melancólico. Uma linda garotinha loira segura uma boneca. Seus olhinhos inocentes perdem-se no encanto daquele universo tão seu. Mas o que tem sido a vida de Betinho? Um brinquedo nas mãos dos demagogos, que só se lembram de Angola e Biafra quando a fome de uma e a miséria da outra rendem dividendos políticos. Primeiro vieram os portugueses. Durante quatrocentos anos extraíram tudo da terra de Betinho. Vieram depois os russos e cubanos com a revolução e arrancaram o que ainda restava da mesma Angola. Só que os outros não vieram com mão amiga e Betinho continuou só. Sem infância e sem esperança. As fotos das duas crianças, entretanto, poderiam estar trocadas. Se as coisas tivessem sido diferentes para Betinho, ele poderia estar segurando um carrinho; a garotinha loira, numa Angola curitibana ou paulista. Não são apenas os negros que sofrem injustiças. Basta rodar pelas cidades brasileiras e presenciar criancinhas de todas as cores sofrendo em preto e branco. Mas como seria bom se ambos pudessem estar na mesma foto de felicidade e se aquele momento jamais amarelecesse! Se jamais perdesse o brilho de Natal!

Transito agora por uma matéria acerca dos pastores eletrônicos. Aqueles astros que ficaram famosos mais pelos escândalos do que pelos serviços prestados à causa do Mestre. Um deles, num ato patético, afirmou que se não conseguisse oito milhões de dólares, praticaria o haraquiri. Verifiquei, então, que Betinho era mais corajoso do que ele. Com certeza Betinho já está morto, porém não se suicidou. Morreu de fome! Os dólares que poderiam salvar-lhe a vida foram dados a um mercenário. A um homem que se acostumou a viver da credulidade alheia. Que promete curas e milagres, mas é incapaz de multiplicar pães e peixes para salvar um pobre africano que tomba com a barriga vazia. E a melhor maneira de se multiplicar pães e peixes é dividir o caviar de cada dia.

Adiante, a revista anuncia os novos laureados com o Prêmio Nobel. Um professor inglês ganha o Nobel de Medicina, mas não terá condições de curar a tuberculose de Betinho. Um americano recebe o Nobel de Física, porém jamais se esforçará para quebrar a relatividade que existe entre o primeiro mundo e o mundo de Betinho. O Nobel de Química cabe a um francês, que pouco poderá fazer para alterar a fórmula da situação que tanto aflige aquele adolescente angolano. Um belga é agraciado com o Nobel de Economia e parece que não convencerá as nações ricas a

repartirem as migalhas de seus superávits com o esfaimado Betinho. O prêmio de Literatura é outorgado a um outro americano, que não consegue retratar a resignação machucada do olhar de Betinho. Não encontra figura de linguagem nem de retórica para descrever aquela expressão. Quanto ao Nobel da Paz, é dado a uma organização que luta pelo respeito aos direitos humanos. Mas se esquece daqueles que, como Betinho, jamais terão seus mais elementares direitos resguardados.

Tentei distrair-me com essa revista, mas folheei apenas misérias e injustiças. Fechei-a. Sinto, contudo, que Betinho ainda não adormeceu. Talvez adormeça amanhã. Sim, amanhã será um grande dia para a corrida espacial. A NASA lançará mais um ônibus espacial. Cinco cosmonautas farão parte dessa nova aventura: quatro americanos e um asiático. Mas Betinho não quer voar tão alto. Ele quer apenas chegar até amanhã com o que ainda lhe resta da vida de hoje. Ah! Ia me esquecendo! Na reportagem sobre a fome que aumenta consideravelmente em Angola, o repórter dirigiu uma pergunta a Betinho:

REPÓRTER: “Você não se cansa de carregar este menino?”

BETINHO: “Não, ele é meu irmão!”



Autor: Claudionor Corrêa de Andrade

(Fonte: MP. 1249/Março 1991)

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