A VERDADE EXPLICADA:
Diante do mais rigoroso tribunal do mundo -- a Sagrada Congregação de Ritos do Vaticano, que examina e julga os processos de canonização --, "o próprio Cristo poderia encontrar dificuldades para provar alguns de Seus milagres; os testes são duros", diz um postulador geral (advogado dos candidatos à santidade). As investigações sobre as virtudes que a pessoa indicada para ser santa desenvolveu durante sua vida e a verificação do valor dos milagres que realizou após a morte (principal condição para a canonização) podem levar séculos. Até o século IV, para alguém ser santo bastava a aclamação popular e a confirmação de um bispo. Os abusos entretanto forçaram a Igreja (católica, claro) a uma revisão e muitos santos caíram do altar. Entre eles São Jorge, patrono da Inglaterra, cuja existência não pôde ser provada.
Para evitar novos problemas, a Igreja (católica, claro) parece não ter pressa em concluir os longos processos: numa organização preocupada com os problemas da eternidade, alguns séculos a mais ou a menos pouco representam. O recente decreto de Paulo VI, que simplifica a burocracia da canonização, tem, por isso, um alcance limitado e poderá encurtar em uns dez anos apenas o caminho para a santificação. Ele altera os primeiros passos do processo, dando autoridade aos bispos -- após a introdução da causa na Congregação dos Ritos -- para convocarem um "tribunal territorial especial" que fará um exame mais minucioso das provas e poderá ouvir depoimentos em última instância. Antes disso era feito em Roma, obrigando o Vaticano a fazer grandes despesas, principalmente com o pagamento das passagens das testemunhas, que eram todas reinquiridas pela Congregação.
Ancheita -- O Brasil também tem seu candidato na Congregação de Ritos. O padre José de Anchieta está à espera de sua canonização há mais de 350 anos. O movimento para transformá-lo em santo começou em 1617. A primeira etapa já foi vencida: é a introdução da causa. Esta é quase sempre proposta pelos superiores das ordens, quando o candidato é um religioso, e pelos familiares e autoridades da cidade onde ele viveu, quando se trata de um leigo. Aceita a causa pela congregação, o candidato passa à condição de venerável. É o estágio onde se encontra Anchieta. Para alcançar o segundo degrau da difícil escalada, a beatificação, Anchieta precisará que pelo menos dois dos milagres a ele atribuídos sejam suficientemente provados. Posteriormente, outros dois o levarão à canonização. Recentemente, seu advogado o padre Paulo Molinari, esteve em São Paulo reunido com os padres Hélio Abranches Viotti, Reinaldo Wenzel e Hiopólito Chemello, os três jesuítas encarregados de procurar e provar os milagres. Mas voltou a Roma de mãos vazias.
A mão do diabo -- O diabo estará atento para evitar a canonização. Ele terá também o seu representante na Sagrada Congregação de Ritos para conseguir outras provas: estas procurarão demonstrar a ilegitimidade dos milagres apresentados e apontar fatos da vida de Anchieta que deponham contra sua fama de santo. Anchieta já enfrentou três advogados do diabo desde o início do processo. Durante os primeiros anos das investigações, mais de duzentos de seus contemporâneos (Anchieta morreu em 1597) prestaram depoimentos contando os seus "casos sobrenaturais". Um ferreiro, Paulo da Cruz, ex-aluno do Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo, Rio, disse ter visto muitas vezes, quando ajudava na missa, o padre Anchieta "alevantando do chão". Um barqueiro contou que um dia levou Anchieta em seu barco. No meio do rio, o bote virou. Esquecendo-se do padre, nadou até à margem. Mas voltou para buscá-lo e ao mergulhar encontrou-o sentado no fundo do rio: não havia interrompido a leitura do catecismo. Nenhum desses milagres, entretanto, pôde se provado na época. E, com o passar do tempo, as dificuldades crescem.
O que é um milagre -- Uma definição de Santo Agostinho, aperfeiçoada por Santo Tomás de Aquino, diz que milagre é um "ato de Deus interferindo diretamente na vida dos homens, e fora da ordem natural". Santo Agostinho foi a primeira pessoa a atribuir aos santos a realização de milagres. Até então acreditava-se que apenas Jesus Cristo pudesse fazê-los. Há teólogos que não creem na interferência de Deus alterando as leis físicas. O milagre estaria na providência divina de fazer coincidir um fenômeno natural com uma necessidade do homem.
Quando os israelitas atravessaram o rio Jordão "a pé enxutos", como conta a Bíblia, não ocorreu nenhum fato sobrenatural. No livro "E A BÍBLIA TINHA RAZÃO", o arqueólogo Werner Keller diz que no Jordão, um rio muito estreito, existem vaus capazes de represar temporariamente a água nas partes mais fundas, deixando o curso inferior quase seco, quando rio enche subitamente. E os israelitas o atravessaram justamente quando começava o degelo das neves do monte Hermon. Por que a Igreja (católica, claro) exige que seus santos sejam milagrosos? A primeira razão está na Bíblia, no Evangelho de Marcos: "Estes sinais hão de acompanhar aqueles que creem; em meu nome expelirão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre os enfermos, eles ficarão curados..." Tais poderes, diz a Igreja (católica, claro) devem ter os santos. A segunda razão foi definida mais precisamente no Concílio Vaticano I: "O milagre demonstra a origem divina da religião cristã". Só ele é capaz de levar o santo ao altar. E a Igreja (católica, claro) pouco pode fazer para diminuir as dificuldades dessa conquista.
(VEJA nº 33/Abr.1969)
Nenhum comentário:
Postar um comentário